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A grande guerra islâmica

A Síria está a ser dilacerada por várias guerras. A primeira, e mais óbvia, é aquela que se trava pelo controlo do país, entre o governo e os rebeldes, mas há outras mais importantes a longo prazo. Uma delas envolve o Irão e a Arábia Saudita, que lutam pela primazia no mundo islâmico; outra, diretamente relacionada com esta, é a guerra milenar que opõe xiitas a sunitas.

A guerra civil na Síria começou em 2011, com uma revolta popular contra a ditadura do Partido Baath, que dominava o país há mais de 50 anos. De início, a rebelião parecia genuinamente nacional, atravessando quase todas as divisões étnicas e religiosas, mas foi preciso pouco tempo para se perceber que essa imagem era ilusória.

No final de 2012, já era notório que o conflito se tinha tornado claramente sectário: de um lado os xiitas (entre os quais estão os alauítas, a minoria a que pertence o presidente Bashar Al-Assad), que apoiavam o governo; do outro, os sunitas, que procuravam derrubá-lo.

Foi neste contexto que a guerra civil na Síria se internacionalizou. O governo de Assad, que há décadas era apoiado pelo Irão xiita, continuou a ter esse apoio, e mais reforçado. Hoje, boa parte do poderio militar do regime assenta na acção dos conselheiros militares iranianos e dos milicianos do Hezbollah, o partido xiita libanês que é suportado pelo Irão, que combatem ao lado das forças governamentais.

Do outro lado, os inúmeros grupos rebeldes sunitas são apoiados, em maior ou menor grau, pelas monarquias árabes, das quais a mais importante é a Arábia Saudita. Essas monarquias partilham a mesma versão estrita do islamismo sunita, o wahhabismo, que inspirou duas organizações extremistas que também participam na guerra civil síria: o Estado Islâmico e a Al-Qaeda.

O fundamentalismo islâmico wahhabita surgiu nos confins da Península Arábica no século XVIII e caracteriza-se pela sua intolerância face a todas as outras crenças religiosas, incluindo mesmo as que fazem parte do islamismo. Os wahhabitas mais extremistas reservam um especial desprezo para os xiitas, que são o mais importante ramo minoritário do Islão, com dez a vinte por cento de todos os crentes. Os xiitas são maioritários em apenas quatro países do mundo: Irão, Iraque, Bahrain e Azerbeijão.

A ascensão do sunismo wahhabita e da família Saud estão absolutamente interligadas, mas só nos últimos 35 anos é que a casa real exportou essa ideologia religiosa para todo mundo islâmico, e não só. Essa decisão foi a resposta saudita a três acontecimentos do ano de 1979: a Revolução Iraniana, a invasão do Afeganistão pela União Soviética e a tomada da Grande Mesquita de Meca, o lugar mais santo do Islão, por um grupo de extremistas sunitas que queriam derrubar a família real, e que só foram derrotados ao fim de duas semanas de combates ferozes.

Esses três acontecimentos convenceram os Saud que o seu domínio do país estava em sério risco e que a sua resposta teria de passar pelo reforço da sua legitimidade religiosa, enquanto guardiães da pureza da religião muçulmana e dos lugares santos de Meca e Medina.

Por isso, internamente, o governo tratou de impôr à população uma versão cada vez mais estrita do fundamentalismo wahhabita, ao mesmo tempo que, externamente, tratou de a exportar através do financiamento de grupos e entidades religiosas.

O que aconteceu nas décadas seguintes é bem conhecido: os clérigos wahhabitas mais extremistas propagandearam uma visão cada vez mais extremista e violenta da sua fé, e muitas vezes organizaram grupos armados para a levar à prática. Os seus principais inimigos eram os ocidentais, os judeus e, principalmente, os xiitas, que são, de longe, o grupo mais numeroso das suas vítimas.

Esta disseminação do fundamentalismo sunita procurou contrabalançar a expansão do fundamentalismo xiita lançada pelo Irão, sob o comando do ayatollah Khomeini. Tal como o wahhabismo, a versão do islamismo proposta pelo líder iraniano acentuava a necessidade do regresso à pureza inicial dos ensinamentos de Maomé, mas depois divergia em dois aspectos fundamentais: onde os wahhabitas apelavam à guerra contra os xiitas, por estes serem apóstatas, Khomeini e os seus seguidores defendiam a união das duas facções; onde os sunitas aceitavam a subordinação do poder religioso ao poder político, os xiitas iranianos punham o poder religioso à frente do poder político. No Irão, o ayatollah Khomeini era o Líder Supremo, cujo poder ultrapassava o do próprio Presidente da República, e assim continua a ser com os seus sucessores.

Como é fácil de calcular, isto era inaceitável para a família real saudita. A doutrina de Khomeini não só implicava a destruição do seu governo, como a de todos os outros da região, uma vez que nenhum deles tinha uma liderança religiosa.

Para os sauditas, havia ainda uma ameaça a interna a ter em consideração: dentro das suas fronteiras, existe uma minoria xiita significativa, e muito discriminada, que ainda por cima habita as principais zonas produtoras de petróleo do país. O medo de uma potencial agitação dessa minoria, incitada pelo Irão, é um factor sempre presente nas relações entre os dois países.

A juntar a tudo isto temos ainda a divergência na relação com os Estados Unidos. Apesar de a grande maioria da opinião pública árabe ser hostil aos EUA, devido ao seu apoio a Israel, a Arábia Saudita mantém uma aliança antiga e forte com os norte-americanos. Já o Irão revolucionário´adoptou uma posição exactamente oposta, uma vez que o governo de Washington era o grande sustentáculo do anterior regime, liderado pelo Xá Reza Pahlavi.

Para o ayatollah Khomeini, os Estados Unidos eram o “Grande Satã” e, por isso, o seu governo combateu os interesses norte-americanos em todo o mundo, recorrendo mesmo ao terrorismo. O sequestro, pouco depois da Revolução Islâmica, de dezenas de diplomatas norte-americanos que trabalhavam na embaixada dos EUA em Teerão foi um dos acontecimentos mais humilhantes da história norte-americana das últimas décadas e deu enorme prestígio a Khomeini e ao novo regime em grande parte do mundo árabe.

Como é fácil de calcular, a comparação com o Irão, nessa altura, não beneficiou a monarquia saudita, acusada por muitos de ser um mero fantoche dos interesses petrolíferos norte-americanos.

De então para cá, o fulgor do regime iraniano desvaneceu-se, mas a rivalidade entre a Arábia Saudita e o Irão permaneceu, porque a realidade geoestratégica assim o impõe. São dois países grandes em território, população e recursos petrolíferos, mas que estão divididos pela religião e pelo tipo de regime político que têm.

São rivais naturais na luta pela liderança do mundo islâmico e isso dificilmente mudará.

 

Sunitas e xiitas: uma divisão com 1200 anos

A rivalidade entre a Arábia Saudita sunita e o Irão xiita reflecte uma outra, que dura há quase tanto tempo como a religião muçulmana.

Ao contrário do que aconteceu com o Cristianismo, que se foi fracturando por questões doutrinárias, o Islamismo teve o seu principal factor de divergência na questão da sucessão do profeta Maomé, o fundador da religião.

Após a morte deste, em 632, os seus seguidores dividiram-se em dois campos: os sunitas, defendiam que o legítimo sucessor à frente da comunidade deveria ser Abu Bakr, o sogro de Maomé; os xiitas, propunham a primazia de Ali, primo e genro do profeta.

Abu Bakr prevaleceu e tornou-se no primeiro califa (chefe supremo) dos muçulmanos, mas essa decisão não foi aceite pelos seguidores de Ali. Este acabou por ascender ao califado em 657, mas por pouco tempo. Ali acabou por ser assassinado e o seu filho, Hussein, que tentou restabelecer a linha xiita no califado, foi morto na batalha de Karbala, em 680.

Os sunitas saíram vencedores e o seu antagonismo com os xiitas revelou-se insuperável até hoje.

 

Este artigo foi publicado com pequenas alterações no número de Março da revista “Família Cristã”.

Atentado na Bulgária II

Há mais alguns detalhes sobre o atentado de ontem contra um grupo de turistas israelitas na Bulgária.

O bombista suicida tinha em sua posse uma carta de condução falsa do estado norte-americano do Michigan. Isto é significativo, na medida em que uma das comunidades árabes mais importantes dos Estados Unidos está situada em Dearborn, uma cidade daquele estado.

Os árabes de Dearborn já foram acusados várias vezes de terem ligações terroristas, mas nada de muito substancial foi comprovado. A carta de condução falsa pode ser uma pista legítima, ou apenas uma tentativa de desviar as atenções dos verdadeiros executores do atentado.

Atentado na Bulgária

 

O ataque bombista de hoje contra turistas israelitas na Bulgária é o mais grave de uma série de atentados que têm ocorrido este ano, mas que têm sido pouco notados.  O primeiro-ministro de Israel já veio culpar o Irão pelo ataque, o que pode parecer apressado à primeira vista, não fosse o facto de os serviços de antiterroristas de Tel Aviv andarem a lançar alertas nesse sentido desde, pelo menos, Fevereiro.

Benjamin Netanyahu não parece ser o tipo de chefe de governo que vá aceitar isto sem retaliação. No pior dos casos, este atentado pode ser a desculpa que os “falcões” da coligação governamental (e há-os bem mais radicais do que o primeiro-ministro) precisavam para impor um ataque de larga escala ao Irão. Na perspectiva mais realista, creio que a Mossad vai receber mais algumas “missões especiais” nos próximos meses – ou não andasse ela já tão ocupada por aquelas bandas.