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Enquanto não olhamos…

Enquanto andamos ocupados com os nossos próprios problemas, enquanto olhamos obsessivamente para a Zona Euro, para Bruxelas, para o senhor Draghi e para a senhora Merkel, a Europa de Leste começa a arder em lume cada vez menos brando. Veja-se o que se está a passar na Bulgária e na Hungria (aqui e aqui).
Tal como aconteceu repetidamente nos últimos séculos, é nesta região que o destino da Europa se vai definir. As heranças imperiais otomanas a austro-húngaras continuam a ebulir e agora não há russos para as abafar, nem euros que cheguem para as diluir. O senhor Juncker bem avisa os incautos para terem juízo: não é por termos tido paz nas últimas sete décadas (ex-Jugoslávia à parte) que a vamos ter para sempre. A Europa pode ter uma nova guerra. E não é preciso muito para a começar.

A Leste, muito de novo III

É por isto que a revista The Economist é uma das três ou quatro melhores publicações do mundo. Quem mais se dá ao trabalho de publicar em poucos dias três excelentes artigos sobre a Roménia, a Bulgária e a Hungria?

Quem quiser perceber a violenta tempestade que se está a formar a Leste por estes dias tem de acompanhar a cobertura que a The Economist tem feito do tema. A não perder, mesmo.

A Leste, muito de novo II

No seguimento dos últimos posts sobre o agravamento da situação política e económica no Leste da Europa, fica aqui este excelente artigo da Foreign Affairs sobre os ataques à democracia na Hungria.

A Leste, muito de novo

No último post tinha prometido que iria abordar com mais detalhe a situação muito difícil que se vive no Leste da Europa. Como escrevi um artigo sobre esse mesmo assunto para o número de Maio da revista “Família Cristã”, deixo-vos aqui uma versão ligeiramente encurtada desse texto, que julgo que se mantém perfeitamente actual.

O artigo não está disponível na página da revista, caso contrário deixar-vos-ia a respectiva hiperligação.

Aqui fica.

 

A Europa e a crise

Nuvens a Leste

A crise das dívidas soberanas centrou as atenções mundiais nos países do Sul da Europa nos últimos dois anos. Entretanto, a Leste, desenvolvimentos importantes passaram quase despercebidos. Alguns dos países da região têm enfrentado  grandes dificuldades económicas e financeiras, o que deu mais popularidade a alguns partidos extremistas. Velhos fantasmas, como os do nazismo e do anti-semitismo, começam a ressurgir.

O parlamento húngaro foi palco de um incidente revelador no dia 4 de Abril deste ano. O deputado Zsolth Barath, do partido Jobbik, de extrema-direita, decidiu discursar sobre um episódio acontecido no seu país… em 1882.

O parlamentar criticou a decisão de um juiz de absolver vários judeus de um alegado homicídio ritual de uma jovem camponesa. Segundo Barath, o magistrado tinha provas de que os homens eram culpados, mas libertou-os porque foi pressionado para tal. Caso tivesse havido uma condenação, garantiu o deputado, os grandes financeiros europeus da altura – judeus, claro está – levariam a Hungria à bancarrota.

As palavras de Zsolth Barath foram rapidamente condenadas por partidos do Governo e da oposição, tendo sido mesmo exigido que ele se demitisse. Todavia, apesar de todos os protestos, parece haver um grande número de húngaros que defendem posições extremistas como esta: nas últimas eleições, em 2010, o Jobbik conseguiu quase 17% dos votos, tornando-se assim no segundo principal partido da oposição. O seu triunfo foi alcançado com base num discurso caracterizado pelo nacionalismo extremo e pelos ataques contra judeus e ciganos.

Um dos líderes da comunidade judaica húngara afirmou que o discurso racista está a tornar-se cada vez mais comum no parlamento, e que a situação atingiu uma gravidade inédita desde o regresso da Hungria à democracia, há pouco mais de vinte anos. O rabi Slovo Koves disse mesmo que “o anti-semitismo escalou até um ponto tal que já não pode ser ignorado por nenhuma pessoa decente”.

Tudo isto se passa num país em que judeus e ciganos foram perseguidos durante séculos, e que foi aliado da Alemanha nazi durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1945, após o fim do conflito, mais de 600 mil de judeus húngaros tinham morrido nos campos de concentração – cerca de dois terços daqueles que ali viviam antes da guerra. O mesmo aconteceu com cerca de 30 mil ciganos.

O partido Fidesz, que está no poder desde 2010, foi um dos que se pronunciou contra o discurso de Zsolth Barath, mas não se pode dizer que o seu registo democrático seja brilhante – embora a outros níveis.

Os conservadores, liderados pelo primeiro-ministro Viktor Orbán, têm demonstrado um grande apego ao poder – tão grande, aliás, que até levou a União Europeia a tomar medidas de uma dureza inédita contra um estado membro.

No centro da controvérsia está a nova constituição húngara, que concentra nas mãos do executivo e do partido que o apoia um conjunto muito grande de poderes, especialmente no que diz respeito ao controlo da Justiça e dos meios de comunicação social. De acordo com as novas regras, o Governo nomeia quem bem entende para magistratura, o que coloca em causa o princípio da independência do poder judicial.

Perante a ameaça de sanções de Bruxelas, em especial a suspensão dos fundos europeus, o governo de Orbán recuou parcialmente, e prepara alterações em algumas leis. Contudo, se o faz, é apenas porque as circunstâncias económicas e financeiras assim o ditam. Em 2008, a Hungria esteve à beira de cair na bancarrota, e só salvou dela graças à ajuda do Fundo Monetário Internacional (FMI) e da União Europeia. De então para cá, o país adoptou a costumeira receita da austeridade, com resultados já familiares: o défice público desceu, mas não o suficiente, e a actividade económica está estagnada. Resultado: a Hungria precisa novamente de apoio externo e, por isso, Viktor Orbán não se pode dar ao luxo de virar as costas à Comissão Europeia, embora, para consumo interno, diga isso mesmo repetidamente.

É neste quadro de agitação política e crise económica que temos de colocar o crescimento do extremismo, do racismo e dos sentimentos antidemocráticos – quer na Hungria, quer noutros países da Europa de Leste.

Vizinha da Hungria, a Roménia passa por todos estes problemas, com uma agravante: a sua população é muito mais pobre. Também os romenos foram obrigados a recorrer à ajuda externa, e também eles foram obrigados a engolir a amarga pílula da austeridade imposta de fora. Os rendimentos, já de si muito magros, de pensionistas e funcionários públicos foram cortados até níveis infra-humanos. Em muitos casos, as pessoas não têm mais do que algumas dezenas de euros por mês para sobreviver.

Perante este quadro, a contestação aumentou exponencialmente. Durante o Inverno, sucederam-se as manifestações exigindo a demissão do governo de centro-direita, e ele acabou mesmo por cair em Fevereiro.

Não é que faça muita diferença. O novo executivo, que continua a ser da confiança do presidente Traian Basescu, terá de continuar a cumprir o programa da União Europeia e do FMI.

O que também não mudará muito é a atitude de grande parte da população em relação aos ciganos, um grupo muito discriminado há séculos. Nos últimos anos, a situação tem vindo a piorar, com extremistas a incitarem abertamente ao ódio racial, um fenómeno comum à Hungria, à Bulgária, à Ucrânia e a outros países da zona.

No caso romeno, o Partido da Grande Roménia (PRM) é a principal força política de extrema-direita. Os seus alvos preferidos são os ciganos e a minoria húngara que vive no país, e o seu objectivo principal é estender as fronteiras da Roménia a todos os territórios que lhe pertenceram até à Segunda Guerra Mundial. Isto significa que os ultranacionalistas romenos reclamam a reintegração da Moldávia e de partes da Bulgária e da Ucrânia.

Estas aspirações territoriais são mais um factor que potencia o extremismo na Europa de Leste. Ao contrário do que se passa noutras regiões do continente, ali ainda há muitos problemas fronteiriços latentes, que renascem com facilidade na mente das populações quando são relembradas por políticos populistas. Em alguns casos, são mesmo os partidos teoricamente mais centristas que assumem essas causas, na tentativa de captar votos e distrair as atenções do eleitorado das questões económicas e sociais que geram mais insatisfação.

Algo semelhante a isto aconteceu na Bulgária nos últimos anos. O partido nacionalista Ataka obteve quase dez por cento dos votos nas últimas eleições legislativas, em 2009. Devido às suas posições extremistas, que colocam os ciganos e os turcos como a origem de quase todos os males que afligem os búlgaros, o Ataka foi posto de lado pelos outros partidos no que diz respeito à formação de coligações.

Todavia, isso não o impediu de influenciar a actuação do Governo. Mesmo sem um acordo explícito, os nacionalistas apoiaram o governo minoritário do primeiro-ministro Boyko Borisov, que acabou por adoptar algumas das políticas defendidas pelo Ataka.

Para além do nacionalismo estridente e da identificação rápida de supostos inimigos nacionais (judeus, ciganos e outras minorias), os partidos extremistas da Europa de Leste têm outra característica comum: a denúncia da corrupção, especialmente entre os políticos dos partidos com acesso ao poder.

Este é um aspecto decisivo do seu apelo, uma vez que a corrupção e o crime organizado têm uma enorme preponderância na maior parte dos países desta zona da Europa. Em Fevereiro deste ano, por exemplo, milhares de pessoas vieram para as ruas de Bratislava, a capital da Eslováquia, para protestar contra um esquema de corrupção que terá sido descoberto pelos serviços secretos daquele país. Os dados que vieram a público indicam que políticos da coligação governamental terão recebido milhões de euros em subornos para atribuir a vitória a certas empresas nas privatizações que ali têm decorrido.

Casos como este repetem-se com frequência, e a falta de acção da justiça apenas reforça o sentimento de grande parte dos cidadãos de que não vivem em verdadeiras democracias. Quando assim é, não é difícil perceber porque é que o extremismo político ganha tanta aceitação.