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Enquanto não olhamos…

Enquanto andamos ocupados com os nossos próprios problemas, enquanto olhamos obsessivamente para a Zona Euro, para Bruxelas, para o senhor Draghi e para a senhora Merkel, a Europa de Leste começa a arder em lume cada vez menos brando. Veja-se o que se está a passar na Bulgária e na Hungria (aqui e aqui).
Tal como aconteceu repetidamente nos últimos séculos, é nesta região que o destino da Europa se vai definir. As heranças imperiais otomanas a austro-húngaras continuam a ebulir e agora não há russos para as abafar, nem euros que cheguem para as diluir. O senhor Juncker bem avisa os incautos para terem juízo: não é por termos tido paz nas últimas sete décadas (ex-Jugoslávia à parte) que a vamos ter para sempre. A Europa pode ter uma nova guerra. E não é preciso muito para a começar.

Na morte de John Keegan

Morreu anteontem, aos 78 anos, John Keegan, um dos mais importantes historiadores e analistas militares das últimas décadas.

Os seus artigos no “Daily Telegraph” mereciam sempre leitura atenta, e os seus livros mais ainda, embora os méritos de alguns  – especialmente os últimos – fossem muito discutidos.

Se mais não houver, uma das suas obras dá-lhe um lugar crucial na historiografia moderna – e não só a militar. Esse livro é “O Rosto da Batalha”, de 1976.

Apesar de o ter lido há mais de 20 anos, nunca mais esqueci o profundo impacto que teve em mim. Pela primeira vez na vida, tive um vislumbre (e apenas isso!) do que era estar numa batalha, do que era lutar pela vida num qualquer lamaçal da Europa.

John Keegan, que viveu quase toda a vida com uma grande incapacidade física, e que por isso nem sequer cumpriu serviço militar, conseguiu transmitir de forma inigualável o que via, o que ouvia, o que fazia e até o que sentia um soldado no campo de batalha.

Quem ler “O Rosto da Batalha” percebe imediatamente como a História Militar tradicional, construída a partir do ponto de vista dos generais e dos estadistas, com as suas ordens e mapas, é não só reducionista, como mentirosa.

Mais importante ainda: a história de Keegan, contada a partir da perspectiva de quem matava e morria, desmistifica completamente o que é fazer uma guerra e todas as consequências terríveis que traz a quem nela participa.

Por tudo isto, John Keegan continuará a ser lido por muitos e muitos anos – e não vejo homenagem mais apropriada que se lhe possa fazer.

A guerra e os exércitos do futuro

Com a devida vénia ao Luís Barroso, deixo-vos aqui um artigo muito interessante (e bem-humorado!) de David Betz no Kings of War. Centra-se no debate feroz que tem decorrido nos últimos anos sobre a preponderância da contra-insurreição (COIN) nos conflitos do futuro, mas tem um bocadinho para todos. Gostei especialmente da forma desempoeirada como Betz avaliou os presumíveis inimigos norte-americanos numa guerra convencional e, já agora, das suas analogias musicais e cinematográficas.

A sua conclusão parece-me muito válida e clara, e corta a direito pelo emaranhado doutrinário e umbiguista que tem tornado o debate COIN vs. Grandes Guerras Intensas (designação inventada por mim, claro está) num bocejo.

Aqui fica:

Callwell descreveu as guerras pequenas como “arrastadas, ingratas e invertebradas”. Na nossa era menos elegante e mais económica, diríamos que elas são uma porcaria. E depois? Se os soldados protestam e dizem que este tipo de guerra não é ao seu gosto, e se os contribuintes dizem que ela dá pouco para o que custa, têm de entender que esta é a única guerra que são capazes de ter e que mais vale perder as ilusões que tenham sobre ela.

O modo ocidental de fazer a guerra

O Kings of War tem um post muito interessante sobre a alegada quebra de aprumo e disciplina que se verifica no Exército Australiano – ou pelo menos na porção dele que presta serviço no Afeganistão.

O texto centra-se no relatório final de comissão de serviço de um coronel não identificado, que dá um parecer devastador sobre o comportamento de soldados, sargentos e oficiais subalternos. De acordo com esse oficial superior, é comum ver-se militares a tomar banhos de sol e a ouvir música em postos de combate, ou a jogar golfe ou futebol (na versão australiana, presume-se) em zonas onde o inimigo está presente, entre muitos outros comportamentos incorrectos e perigosos.

O problema, diz o autor do relatório, é que os militares australianos destacados para o Afeganistão têm uma visão distorcida do que é ser soldado em tempo de guerra, uma visão adquirida através de filmes e jogos de computadores que os fizeram crer que são autênticos gladiadores romanos, a quem tudo é permitido entre missões: vestir o que querem e como querem; questionar ordens; desrespeitar normas de segurança e regulamentos.

É claro que podemos discutir até que ponto este relatório é representativo da realidade global das forças destacadas australianas, algo que só especialistas poderiam responder, mas creio que é mais interessante avaliar as causas da situação que o coronel identifica. A saber:

1- Liderança pusilânime: oficiais e sargentos estão demasiado preocupados com o que os seus homens pensam deles e, por isso, encorajam uma excessiva familiaridade. O desejo de agradar gera uma identificação perniciosa com os soldados e as suas necessidades. A missão passa para segundo lugar nas prioridades… ou nem isso. A primeira prioridade passa a ser sobrevivência e o bem-estar dos soldados.

2- Má compreensão do que é comandar: a tendência crescente, diz o coronel, é passar responsabilidades sobre a definição da melhor forma de cumprir a missão. O oficial superior define os objectivos, disponibiliza os meios e o resto é com quem está no terreno. O que resulta daqui, diz o relatório, é a incapacidade crescente do oficialato de tomar decisões impopulares e difíceis.

3 – Má compreensão do papel das Forças Armadas: o autor do relatório defende uma perspectiva clausewitziana sobre o fim a que se destina um exército: derrotar com o uso da violência os inimigos que tentam travar a concretização dos objectivos políticos do Estado; não é proteger populações, nem distribuir ajuda humanitária.

Estas três acusações são muito relevantes para uma discussão esclarecedora sobre o papel das Forças Armadas nas democracias ocidentais e o modo como elas conduzem as suas guerras.

Questões disciplinares e de comando à parte, uma vez que não temos dados que nos permitam confirmar a correcção daquilo que o coronel australiano nos diz, creio que o essencial do seu diagnóstico sobre a forma como as Forças Armadas e a guerra são encaradas é válido para os países ocidentais – e digo isto sem qualquer juízo de valor.

As sociedades democráticas e liberais convivem mal com os rigores da guerra e da actividade militar em geral. Os valores que instilam nos seus cidadãos – primazia dos direitos individuais, valorização do conforto e do bem-estar material sobre quase tudo, liberdade (quase) total de expressão, individualismo – criam uma aversão quase instintiva à condição militar, que, tradicionalmente, exige a submissão permanente do indivíduo ao grupo e à missão, mesmo que com o custo da própria vida.

Provas disso mesmo foram o desaparecimento do serviço militar obrigatório e a obsolescência da ideia da Nação em Armas, que resultaram tanto do aumento da sofisticação teconológica dos equipamentos militares como da falta de vontade das sociedades em obrigar os seus mancebos a passarem um, dois ou três anos das suas vidas nas fileiras.

No futuro antecipável, nunca mais se verá, como na 2.ª Guerra Mundial, uma nação democrática mobilizar todos os seus recursos humanos e materiais para vencer um conflito. E não acontecerá porque, pura e simplesmente, não há vontade para tal, a não ser que se verifique uma situação improvável de ameaça directa e imediata à sobrevivência do Estado – e talvez nem então.

A tolerância das democracias para a guerra não vai além das operações de baixa intensidade, que podem durar anos mas causam números de baixas muito reduzidos. Operações de alta intensidade, em que se podem esperar muitas baixas num espaço de tempo muito curto, são espécie em vias de extinção, não só porque a actual superioridade teconológica das forças armadas ocidentais leva a que os seus inimigos recusem um confronto desse tipo, mas também porque as opiniões públicas e os políticos não estão dispostos a suportá-las.

A aversão à baixa é particularmente forte. Há quase cem anos, no primeiro dia da Batalha do Somme, o Exército Britânico perdeu mais de 20 mil homens, grande parte dos quais morreram na primeira meia-hora de combate. Logo na altura, o massacre causou uma profunda impressão na opinião pública, mas os britânicos continuaram a combater durante dois anos mais, até à vitória final na 1ª Guerra Mundial. Hoje, 20 mortos em meia-hora seriam considerados uma derrota militar de peso que poria em causa a continuação do esforço militar. Por menos do que isso, em 1991, os Estados Unidos deixaram a Somália, num episódio celebrizado por um excelente livro de Mark Bowden, que depois foi transposto para o cinema.

Dou este exemplo da 1ª Guerra Mundial porque creio ter sido nessa altura que se instalou na psique ocidental (especialmente a europeia) uma aversão generalizada ao uso da força militar, que foi sendo reforçada até aos nossos dias. As Forças Armadas foram sendo remetidas para papéis defensivos (não é por acaso que os ministérios da Guerra foram substituídos por ministérios da Defesa nas nomenclaturas governamentais) ou humanitários. A guerra ofensiva tornou-se tabu fora dos constrangimentos multilaterais do Direito Internacional – e daí o choque causado pela invasão do Iraque, em 2003.

Tudo isto levou a uma profunda alteração do estatuto e do papel do combatente. As sociedades, sempre temerosas dos seus centuriões, querem que eles sejam reflexos delas mesmas e dos seus valores democráticos, mesmo quando eles estão no meio de uma emboscada num qualquer recanto do Afeganistão.

No passado, a tarefa de um soldado era matar o inimigo e, se possível (mas não essencial), evitar que o matassem. Hoje, nos exércitos dos países democráticos, a sua função é muito mais complexa, para não dizer impossível: ele tem de cumprir regras de empenhamento que limitam muito o seu uso da força; tem de respeitar escrupulosamente os direitos humanos dos civis, e até dos seus inimigos; muitas vezes, tem de ser relações públicas, enfermeiro, assistente social ou até professor.

Para fazer tudo isto, o Governo coloca-lhe nas mãos equipamento sofisticado, caro e mortífero, mas cuja utilização está limitada pelas regras já mencionadas. Pede-se-lhe, acima de tudo, que não se deixe matar, porque isso “dá má imprensa” e corrói o apoio à missão. Por isso, os seus oficiais, quando falam à comunicação social, estabelecem muitas vezes como objectivo prioritário trazê-los todos de volta, vivos e sãos – não cumprir essa mesma missão.

Assim, o empenho dos países ocidentais num conflito é sempre condicionado e limitado: normalmente só entram nele quando julgam que o podem vencer depressa e sem grandes custos humanos. Se, pela sua duração ou intensidade, ele ameaça o fluir normal da sociedade ou da economia, a tendência é a retirada. Assim aconteceu no Iraque; assim está a acontecer no Afeganistão.

Na verdade, o Ocidente não estômago para a guerra. Mesmo os Estados Unidos, que, por virtude do seu poderio e do seu contacto directo limitado com os horrores das duas guerras mundiais, se mostravam capazes de gastar tesouro e sangue com relativa generosidade, apresentam-se agora saturados e exauridos. As guerras dos últimos dez anos deixaram um gosto amargo na boca de muita gente, e os militares não são excepção: muitos sentem que foram conduzidos sem objectivos claros e realistas por políticos e generais que não sabem muito bem o que estão a fazer, e tentam melhorar o que podem; outros, mais empedernidos e desmoralizados, limitam-se a jogar golfe numa base perdida no meio do Afeganistão.